15.6.23

Doze Anos por Aqui

Estou atrás 

do despojamento mais inteiro 
da simplicidade mais erma 
da palavra mais recém-nascida 
do inteiro mais despojado 
do ermo mais simples 
do nascimento a mais da palavra. 

Ana Cristina Cesar ( 28.5.69) em” Inéditos e dispersos” [ organização armando Freitas Filho] . São Paulo : Editora Ática/IMS, 1999.

14.1.23

Livramento

 

Guignard , 1933 - Coleção Cartões para Amalita, Museu Guignard, MG

ARTE POÉTICA

Escrever um poema
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem às mãos
é peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
ou nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo de não chegar ao fim
é uma questão de vida ou de morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio
que não sei dizer


Adília Lopes

 



25.8.22

Rosa Mística

 

                                                         Jean-Bathiste Siméon Chardin


A primeira vez
que tive a consciência de uma forma,
disse à minha mãe:
dona Armanda tem na cozinha dela uma cesta
onde põe os tomates e as cebolas;
começando a inquietar-me pelo medo
do que era bonito desmanchar-se,
até que um dia escrevi:
”neste quarto meu pai morreu,
aqui deu corda ao relógio
e apoiou os cotovelos
no que pensava ser uma janela
e eram os beirais da morte”.
Entendi que as palavras
daquele modo agrupadas
dispensavam as coisas sobre as quais versavam,
meu próprio pai voltava, indestrutível.
Como se alguém pintasse
a cesta de dona Armanda
me dizendo em seguida:
agora podes comer as frutas.
Havia uma ordem no mundo,
de onde vinha?
E por que contristava a alma
sendo ela própria alegria
e diversa da luz do dia,
banhava-se em outra luz?
Era forçoso garantir o mundo,
da corrosão do tempo, o próprio tempo burlar.
Então prossegui: “neste quarto meu pai morreu.
Podes fechar-te, ó noite,
teu negrume não vela esta lembrança”.
Foi o primeiro poema que escrevi.


Adélia Prado

(O Pelicano 1987)


20.7.22

Chapéu de Palha

 

Masao Yamamoto

 

Chapéu de palha 

Matilde Campilho

Fazes-me lembrar
um filme do Rohmer
ou o toldo vermelho
do Joaquim Manuel
Quando penso em ti
eu esqueço o lixo
que de manhã faz barulho
à minha porta
Pareces-te com o tempo
das amendoeiras
Tens tudo a ver com
a escadaria semi-invisível
que o mágico escavou
no rochedo atlântico
Sim tu pareces o Verão
Às vezes quando entras
quase dá para ouvir o ruído
do motor de um jipe
Um Lada Niva por exemplo
(de cor azul)
a assapar entre a poeira
e os eucaliptos
sempre em direção à praia
Fazes lembrar a alegria
de um risco na parede
desenhado a carvão
pela criança da manhã
É no verde dos teus olhos
que eu treino a disciplina
de uma explosão sossegada
que se vai revelando devagar
ao ritmo das estações concretas
E já agora também é no amarelo
dos teus olhos que eu descanso
da guerrilha do mundo moderno
Aquele que nos fez esquecer
a gargalhada de David
quando derrotou o gigante
(mas olha há sempre um riso
ecoando lento na caverna)
Estamos aqui para vencer a dor
E teu rosto diário faz lembrar
a vitória do tempo sobre o tempo
Porque afinal de contas tu
te pareces muito com a promessa
de uma fé vagarosa & livre
Pareces a coragem, pareces a paz
Pareces mesmo a madrugada egípcia
sobre a qual voa um passarinho.






14.6.22

Onze Anos por Aqui

Edouard Vuillard - Iris et Pensées, 1901 


 Amor e Sexo 

 Amor é um livro 
Sexo é esporte 
Sexo é escolha 
Amor é sorte 
Amor é pensamento, teorema 
Amor é novela 
Sexo é cinema 
Sexo é imaginação, fantasia 
Amor é prosa 
Sexo é poesia 
O amor nos torna patéticos 
Sexo é uma selva de epiléticos 
Amor é cristão 
Sexo é pagão 
Amor é latifúndio 
Sexo é invasão 
Amor é divino 
Sexo é animal 
Amor é bossa nova 
Sexo é carnaval 
Amor é para sempre 
Sexo também 
Sexo é do bom 
Amor é do bem 
Amor sem sexo 
É amizade 
Sexo sem amor 
É vontade 
Amor é um 
Sexo é dois 
Sexo antes 
Amor depois 
Sexo vem dos outros 
E vai embora 
Amor vem de nós 
E demora 
Amor é cristão 
Sexo é pagão 
Amor é latifúndio 
Sexo é invasão 
Amor é divino 
Sexo é animal 
Amor é bossa nova 
Sexo é carnaval 
Amor é isso 
Sexo é aquilo 
E coisa e tal 
E tal e coisa 
Ai o amor Hmm o sexo, ahh 

 Compositores: Arnaldo Jabor / Rita Carvalho / Rita Lee Jones Carvalho / Rita Lee Jones De Carvalho / Roberto Zenobio Affonso De Carvalho Letra de Amor e sexo © Warner Chappell Music, Inc

 https://www.youtube.com/watch?v=ho-iGFctXe8

31.12.21

A Vida na Hora

 

Foto  Pentti Sammallathi -Korea, Seul, 2016 Three Birds

A vida na hora.
Cena sem ensaio.
Corpo sem medida.
Cabeça sem reflexão.

Não sei o papel que desempenho.
Só sei que é meu, impermutável.

De que trata a peça
devo adivinhar já em cena.

Despreparada para a honra de viver,
mal posso manter o ritmo que a peça impõe.
Improviso embora me repugne a improvisação.
Tropeço a cada passo no desconhecimento das coisas.
Meu jeito de ser cheira a província.
Meus instintos são amadorismo.
O pavor do palco, me explicando, é tanto mais humilhante.
As circunstâncias atenuantes me parecem cruéis.

Não dá para retirar as palavras e os reflexos,
inacabada a contagem das estrelas,
o caráter como o casaco às pressas abotoado
eis os efeitos deploráveis desta urgência.

Se eu pudesse ao menos praticar uma quarta-feira antes
ou ao menos repetir uma quinta-feira outra vez!
Mas já se avizinha a sexta com um roteiro que não
conheço.
Isso é justo — pergunto
(com a voz rouca
porque nem sequer me foi dado pigarrear nos bastidores).

É ilusório pensar que esta é só uma prova rápida
feita em acomodações provisórias. Não.
De pé em meio à cena vejo como é sólida.
Me impressiona a precisão de cada acessório.
O palco giratório já opera há muito tempo.
Acenderam-se até as mais longínquas nebulosas.
Ah, não tenho dúvida de que é uma estreia.


E o que quer que eu faça,
vai se transformar para sempre naquilo que fiz.

 

Wisława Szymborska, Poemas

Foto Pentti Sammallathi- Delhi, India, 1999 Flock of Birds



Que tenhamos a sabedoria de escolher boas coisas em 2022.
Boa sorte a todos nós!


12.11.21

Espera

 



Deito-me tarde 

 Espero por uma espécie de silêncio 

 Que nunca chega cedo 

 Espero a atenção a concentração da hora tardia 

 Ardente e nua 

 É então que os espelhos acendem o seu segundo brilho 

 É então que se vê o desenho do vazio 

 É então que se vê subitamente 

 A nossa própria mão poisada sobre a mesa 


 É então que se vê passar o silêncio 

 Navegação antiquíssima e solene 


 “Espera”, Sophia de Mello Breyner Andresen


14.6.21

Dez Anos por Aqui

PIRATA 

 Sophia de Mello Breyner 

 Sou o único homem a bordo do meu barco. 
 Os outros são monstros que não falam, 
 Tigres e ursos que amarrei aos remos, 
 E o meu desprezo reina sobre o mar. 

 Gosto de uivar no vento com os mastros 
 E de me abrir na brisa com as velas, 
 E há momentos que são quase esquecimento 
 Numa doçura imensa de regresso. 

 A minha pátria é onde o vento passa, 
A minha amada é onde os roseirais dão flor, 
 O meu desejo é o rastro que ficou das aves, 
 E nunca acordo deste sonho e nunca durmo.

27.1.21

Ao Rio

 

Paul Cézanne - Bridge across a pond - 1890 - Puskin Museum

AO RIO


Ó rio – clepsidra de água metáfora da eternidade

entro em ti cada vez tão diferente

que poderia ser nuvem peixe ou rocha

e tu és imutável como o relógio que marca

as metamorfoses do corpo e as quedas do espírito

a lenta decomposição dos tecidos e do amor



eu nascido do barro

quero ser teu aluno

e conhecer a fonte o coração olímpico

ó tocha fresca coluna cantante

rochedo da minha fé e do desespero



ensina-me ó rio a ser teimoso e persistente

para que mereça na última hora

repouso na sombra do delta imenso

no sagrado triângulo do princípio e do fim


Zbigniew Herbert //Tradução: Ana Cristina César e Grazyna Drabik

28.12.20

Anunciação

 Anunciação- Fra Angelico (Giovanni da Fiesole)- Afresco ca 1492- Museo di San Marco, Firenze



O passado anda atrás de nós

como os detetives os cobradores os ladrões

o futuro anda na frente

como as crianças os guias de montanha

os maratonistas melhores

do que nós

salvo engano o futuro não se imprime

como o passado nas pedras nos móveis no rosto

das pessoas que conhecemos

o passado ao contrário dos gatos

não se limpa a si mesmo

aos cães domesticados se ensina

a andar sempre atrás do dono

mas os cães só aparentemente nos

                                                   [pertencem

pense em como do lodo primeiro surgiu esta

                                                   [poltrona este livro

este besouro este vulcão este despenhadeiro

à frente de nós à frente deles

corre o cão

 

Ana Martins Marques

O Livro das Semelhanças – Ed Cia das Letras  2017

p. 71



16.6.20

A Propósito das Estrelas

Van Gogh - Noite Estrelada - jun 1889  MoMa  NY



A propósito de estrelas


Não sei se me interessei pelo rapaz
por ele se interessar por estrelas
se me interessei por estrelas por me interessar
pelo rapaz hoje quando penso no rapaz
penso em estrelas e quando penso em estrelas
penso no rapaz como me parece
que me vou ocupar com as estrelas
até ao fim dos meus dias parece-me que
não vou deixar de me interessar pelo rapaz
até ao fim dos meus dias
nunca saberei se me interesso por estrelas
se me interesso por um rapaz que se interessa
por estrelas já não me lembro
se vi primeiro as estrelas
se vi primeiro o rapaz
se quando vi o rapaz vi as estrelas


Adília Lopes
Um jogo bastante perigoso- Adilia Lopes

14.6.20

Nove Anos por Aqui

Emile Zola- Edouard Manet - 1868-  Musée d'Orsay  Paris



Epigrama

Entre sonho e lucidez, as incertezas.
Entre delírio e dever, as tempestades.
Ai, para sempre serei seu prisioneiro,
Neste patíbulo amargo de saudades ...


José Paulo Paes in Poesia completa
Companhia das Letras - 2008

5.4.20

Delírios



Pablo Picasso- O beijo - 1969 Musée National Picasso - Paris


O beijo do Jogo da Amarelinha

“Toco sua boca, com um dedo toco o contorno da sua boca, vou desenhando essa boca como se saísse da minha mão, como se pela primeira vez sua boca se entreabrisse, e para mim basta fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar, a cada vez faço nascer a boca que desejo, a boca que minha mão escolhe e desenha no seu rosto, uma boca escolhida entre todas, com soberana liberdade escolhida por mim para ser desenhada com minha mão no seu rosto, e que por um acaso que não tento compreender coincide exatamente com sua boca, que sorri por baixo da que minha mão desenha em você.
Você me olha, de perto você me olha, cada vez mais de perto e então brincamos de ciclope, nos olhamos cada vez de mais perto e os olhos crescem, se aproximam um do outro, se superpõem e os ciclopes se olham, respirando confundidos, as bocas se encontram e lutam calidamente, mordendo‑se com os lábios, apoiando levemente a língua nos dentes, brincando em seus recintos, onde um ar pesado vai e vem com um perfume antigo e um silêncio. Então minhas mãos procuram afundar‑se em seus cabelos, acariciar lentamente a profundidade de seus cabelos enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragrância obscura. E se nos mordemos a dor é doce, e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E há uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e sinto você tremer contra mim como uma lua na água.”


O Jogo da Amarelinha – Julio Cortázar   Cia das Letras
Tradução de Eric Nepomuceno - Cia das Letras
( beijo  que Maga e Oliveira trocam no capítulo 7 )


31.3.20

Equilibrismo

Vladimir Lagrange - Siberia Wireman  1979

Os poemas que escrevo
São moinhos
Que andam ao contrário
As águas que moem
Os moinhos
Que andam ao contrário
São as águas passadas



Com o fogo não se brinca
porque o fogo queima
com o fogo que arde sem se ver
ainda se deve brincar menos
do que com o fogo com fumo
porque o fogo que arde sem se ver
é um fogo que queima
muito
e como queima muito
custa mais
a apagar
do que o fogo com fumo


Adília Lopes – Aqui estão as minhas contas Antologia poética
Organização Sofia de Sousa Silva
Ed. Bazar do Tempo

13.3.20

Anunciação

Virgin Annunciate Antonello da Messina - Pallazzo Abatellis Palermo Sicilia
Teresa
A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna
Quando vi Teresa de novo
Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)
Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.
Manuel Bandeira _ Libertinagem, 1930 




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